Uma menina está perdida no seu século à procura do pai
Posso dizer que em termos de leituras termino muito bem o ano. Melhor seria difícil, muito difícil.
A primeira de duas leituras: Gonçalo M. Tavares, Uma menina está
perdida no seu século à procura do pai.
A ilusão é, por vezes, uma boa guia. Hanna é uma
menina com trissomia 21. Marius encontra Hanna na rua. Sozinha. Ninguém.
Procuram o pai. Ninguém.
Convenci-me. Convenci-me que o livro era mesmo sobre a menina. Sobre
essa condição de deficiência. Sobre encontrar seu pai. É fácil. Muito fácil
pensá-lo. Mas não. Lemos o livro. Conhecemos Marius. Conhecemos Hanna.
Conhecemos outros.
E.
No fim.
Muito me posso enganar, mas o livro é sobre Marius, aquele que nos representa. É sobre nós, os normais, ou assim pensamos.
No fim.
Muito me posso enganar, mas o livro é sobre Marius, aquele que nos representa. É sobre nós, os normais, ou assim pensamos.
Sempre disse que um bom livro nos faz pensar. Certamente este é um
deles.
Alguns excertos de texto em Uma menina está perdida no seu século à
procura do pai, Porto Editora, 2014, Gonçalo M. Tavares:
Hanna tinha uma pequena caixa. (...) Marius abriu a caixa.
Eram fichas. Em cada uma delas no topo a indicação, numa letra
minúscula, APRENDIZAGEM DE PESSOAS COM DEFICIÊNCIA.
Cada ficha tinha um tópico e, depois, um conjunto de passos, actividades
ou questões (...)
«HIGIENE», «6 - Limpar a baba, 7 - Lavar as mãos, 8 - Lavar a cara;
«Saúde e Segurança», «1 - INDICAR A PARTE DO CORPO QUE DOÍ». Marius pensou em
como isto era difícil, não apenas para um deficiente mental, mas para todos os
seres humanos, todos os seres vivos - «indicar a parte do corpo que doí».
Naquele momento, por exemplo, havia nele, Marius, uma dor não física, um claro
incómodo;"
"Numa das fichas lia-se «Meta B: andar na rua», pois sim, eis que
ali estava, Hanna, sozinha na rua. O primeiro passo: «ANDAR PELOS PASSEIOS»
«12 - DESENROSCAR TAMPAS DE FRASCOS»
«2 - SORRIR OU VOCALIZAR EM RESPOSTA À PRESENÇA DE UMA PESSOA OU
SITUAÇÃO AGRADÁVEL»
« RECONHECER SINAIS INDICADORES DE PERIGO»
«ORIENTAR-SE ESPACIAL E TEMPORARIAMENTE»
"Marius sentia uma curiosidade enorme, sentia que aquele curso
também era para ele."
Fried:
“– Fazemos cartazes que depois colamos nas paredes (…) Se fizéssemos um
cálculo do ritmo a que antes se caminhava pelas cidades e comparássemos com a
velocidade actual concluiríamos que as pernas acompanham a evolução técnica:
está tudo mais rápido e as pernas não são excepção; e é por causa desta
velocidade que os cartazes são indispensáveis, e bons cartazes, boas imagens,
boas frases, são elas que obrigam a parar, a parar durante algum tempo
(…)"
"(…) a memória está mais ligada ao bom observador no espaço do que
ao bom observador no tempo, o ritmo do passo aumentou muito mas a imobilidade é
que é importante. Não podemos observar enquanto fugimos."
«HIGIENE, MOTRICIDADE FINA, REAGIR A ESTÍMULOS TÁCTILO-CINESTÉSICOS». Eu
por vezes ainda não sei isto, disse Fried: a melhor maneira de reagir a um soco
é outro soco, outras vezes é fingir que não se tem força para responder,
«ADQUIRIR HÁBITOS À MESA, REAGIR A INSTRUÇÕES GESTUAIS E VERBAIS, REAGIR À
SEXUALIDADE DE MODO SOCIALMENTE ACEITÁVEL, REALIZAR TRABALHOS COM MATÉRIAS
METÁLICAS, TRATAR DE ANIMAIS, e esta esta a seguir, sim, é difícil,
quantos de nós conseguiremos?; e Fried leu: «OCUPAR OS SEUS TEMPOS LIVRES DE
MANEIRA ADEQUADA», você consegue fazer isto, perguntou-me Fried, e eu sorri com
a pergunta, e sim, claro, aquele método de aprendizagem e educação de pessoas
com deficiência mental fazia-me pensar em quantos de nós não teriam um qualquer
problema, bem mais leve, é certo, mas quantos de nós, por exemplo, saberíamos
«OCUPAR OS TEMPOS LIVRES DE MANEIRA ADEQUADA»?
“Avançámos. Todos os quartos tinham uma placa metálica, ligeiramente
acima do olho de vigia, com o nome (…) o nosso era AUSCHWITZ.”
“(…) Marius abre a porta, roda a maçaneta para a esquerda, um olhar
rápido nas últimas letras WITZ (..)
*nota: Traduzido do
alemão "witz" significa "piada".