quinta-feira, 21 de dezembro de 2017

Talvez uma mensagem de Natal

A última tira de fita-cola. Depois de colocados os presentes junto à árvore de Natal ela pára. Um leve suspiro. Sentada no sofá observa a árvore de Natal e lembra-se que nunca pensou quem terá inventado o Pai Natal. Mas agora o mais importante é descansar porque o que lá vem, não é brincadeira. Amanhã, todo um dia para preparar a ceia da consoada, das entradas às sobremesas. Que sorte a dela, esta de mulher. A dela e a da filha, que tem de ajudar.
Para ele as coisas parecem bem mais simples. O carro dela tem qualquer coisa que não está bem. Ele olha, mexe, mas não sabe. Amanhã ele vai ao mecânico. Que sorte a dele, esta de homem. A dele e a do filho, que tem de ajudar.
Mas tudo bem, o dia passou, a consoada chegou. Ansiosamente, os filhos, "Já podemos abrir as prendas?", "Não, porque ainda não é meia noite". Mais cinco minutos, "Já podemos abrir as prendas?", "Têm de esperar mais um pouco!". E consoada adentro lá se vão cortando mais umas fatias de bolo, bebendo um copo ou outro para digestivo, sacudindo as camadas de açúcar dos fritos. "Já podemos abrir as prendas?"
Meia noite. Os pequeninos, eléctricos. São as prendas dos pais, dos avós, dos tios e tias. As prendas não se desembrulham, rasgam-se. A filha recebe um conjunto de utensílios de cozinha, duas bonecas, uma com um menino doente para cuidar e a outra uma princesa, mais um puzzle de princesas, e, claro, um conjunto cor-de-rosa a simular o lar de uma família muito feliz, com todos os utensílios úteis e necessários para a limpeza da casa. O filho recebe um conjunto de carros, garagem e lavagem, dois super-heróis, mais um puzzle de super heróis, e um conjunto  tropas, aviões, barcos de guerra.
O menino olha para as prendas da mana, triste. Pega na boneca doente. "Não, isso não é para ti, é para a mana", diz a mãe, "os meninos não brincam com bonecas".
A menina e o menino. Brincam. Com os carros, com as tropas. O pai, "Então, não queres brincar com as tuas bonecas? Olha aqui estas coisas da cozinha tão giras?! As meninas brincam com bonecas, não brincam com guerreiros, isso é para meninos!"
E, Natal após Natal, contribuímos todos mais um bocadinho para as desigualdades de género, que quase todos os dias nos queixamos. Somos nós que mostramos e que dizemos às crianças o que se espera delas. A culpa não é só da sociedade, é nossa. Se oferecemos conjuntos de cozinha a meninas não nos podemos admirar que elas interiorizem que isso é o certo. Se dizemos aos meninos que as bonecas são para meninas não nos podemos queixar que eles não aprendam a cuidar dos outros. Os brinquedos são dos maiores instrumentos de reprodução de desigualdades de género, de mentalidades, de ambições, de expectativas. Se dizemos aos meninos para brincar com ferramentas, não nos podemos admirar que queiram ser construtores ou engenheiros, se lhes damos uma bola enquanto a menina foi com a mãe às compras, não nos podemos admirar que os homens só pensem em bola e as mulheres a gerir a despensa. Se dizemos às meninas para vestir e cuidar de bonecas não nos podemos queixar que quando crescerem e tiverem os seus filhos, teus netos, são as mães a irem com os filhos ao médico. Se damos princesas às meninas e super heróis aos meninos não se admirem que as raparigas sejam julgadas pela sua beleza e os rapazes pelo domínio e poder.
Até aos três anos os brinquedos são praticamente unisexo. A partir dessa idade os fabricantes de brinquedos sabem que as crianças desenvolvem as suas percepções sobre o mundo, iniciando a sua socialização. Os fabricantes apenas exploram as nossas ideias sobre o mundo, eles sabem que somos nós a distinguir meninos de meninas e vendem-nos o que nós queremos comprar. Há diferenças biológicas e psicológicas entre homens e mulheres, mas também há diferenças sociais e aqui a culpa também é nossa, tua e minha. Não nos podemos só queixar.
Os brinquedos que damos às crianças são para elas um ensinamento. Um ensinamento do que existem dois mundos, um mundo para cada um deles.
Feliz Natal.

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