domingo, 31 de dezembro de 2017

Homens imprudentemente poéticos

O segundo livro com o qual termino 2017 muito bem de leituras é de Valter Hugo Mãe: Homens imprudentemente poéticos.

É a história. É a escrita. São os sentidos. Com Valter Hugo Mãe acrescem novos sentidos. Um sentido bem que pode ser uma parte materializada de uma qualquer dimensão incognoscível da realidade. É a reconfiguração das dimensões no que descobrimos ser uma realidade plástica, informe, elástica. Uma nova forma de ligação entre a realidade, o espaço e os sentidos.
E uma nova forma de.
Explorar.
Imaginar.
Inventar.
Construir.
Sentir.
Um novo significado das palavras.
É a prosa poética.

Leiam este livro e questionar-se-ão sobre o modo como os vossos sentidos interpretam as coisas do mundo.

Alguns excertos em Homens imprudentemente poéticos, de Valter Hugo Mãe, Porto Editora, 2016:

"a felicidade está na atenção a um detalhe. Como o resto se ausentasse para admitir a força de um instante perfeito."

"amar é uma proibição de estar só."

"A beleza carece de nenhum motivo."

"Num abraço, pensava, as pessoas deixavam de se poder ver. Como se, num abraço, fosse indiferente quem estava mas importasse apenas a convicção com que era dado."

"Matsu nunca prometera parar de chorar. Acalmara, mas sabia bem que a felicidade se compunha da soma de muita tristeza também."

"E ela continha sempre o choro para se sentir perto de alguma coisa, ao invés de muito longe de outra."

"Ela [Matsu que é cega] sabia apenas da beleza das palavras porque era com elas que se explicava o mundo. Chegava a gostar das coisas cujos nomes soassem a bonitos. Julgava que os nomes acusavam a propriedade do que queriam significar (..) Ainda assim, guardava da beleza uma ideia sobretudo discursiva."

Sinopse:
Num Japão antigo o artesão Itaro e o oleiro Saburo vivem uma vizinhança inimiga que, em avanços e recuos, lhes muda as prioridades e, sobretudo, a capacidade de se manterem boa gente.
A inimizade, contudo, é coisa pequena diante da miséria comum e do destino.
Conscientes da exuberância da natureza e da falha da sorte, o homem que faz leques e o homem que faz taças medem a sensatez e, sobretudo, os modos incondicionais de amarem suas distintas mulheres.


sábado, 30 de dezembro de 2017

Uma menina está perdida no seu século à procura do pai


Posso dizer que em termos de leituras termino muito bem o ano. Melhor seria difícil, muito difícil.
A primeira de duas leituras: Gonçalo M. Tavares, Uma menina está perdida no seu século à procura do pai.
A ilusão é, por vezes, uma boa guia. Hanna é uma menina com trissomia 21. Marius encontra Hanna na rua. Sozinha. Ninguém. Procuram o pai. Ninguém.
Convenci-me. Convenci-me que o livro era mesmo sobre a menina. Sobre essa condição de deficiência. Sobre encontrar seu pai. É fácil. Muito fácil pensá-lo. Mas não. Lemos o livro. Conhecemos Marius. Conhecemos Hanna. Conhecemos outros.
E.
No fim.
Muito me posso enganar, mas o livro é sobre Marius, aquele que nos representa. É sobre nós, os normais, ou assim pensamos.
Sempre disse que um bom livro nos faz pensar. Certamente este é um deles.
 
Alguns excertos de texto em Uma menina está perdida no seu século à procura do pai, Porto Editora, 2014, Gonçalo M. Tavares:

Hanna tinha uma pequena caixa. (...) Marius abriu a caixa.
Eram fichas. Em cada uma delas no topo a indicação, numa letra minúscula, APRENDIZAGEM DE PESSOAS COM DEFICIÊNCIA.
Cada ficha tinha um tópico e, depois, um conjunto de passos, actividades ou questões (...)
«HIGIENE», «6 - Limpar a baba, 7 - Lavar as mãos, 8 - Lavar a cara; «Saúde e Segurança», «1 - INDICAR A PARTE DO CORPO QUE DOÍ». Marius pensou em como isto era difícil, não apenas para um deficiente mental, mas para todos os seres humanos, todos os seres vivos - «indicar a parte do corpo que doí». Naquele momento, por exemplo, havia nele, Marius, uma dor não física, um claro incómodo;"

"Numa das fichas lia-se «Meta B: andar na rua», pois sim, eis que ali estava, Hanna, sozinha na rua. O primeiro passo: «ANDAR PELOS PASSEIOS»

«12 - DESENROSCAR TAMPAS DE FRASCOS»

«2 - SORRIR OU VOCALIZAR EM RESPOSTA À PRESENÇA DE UMA PESSOA OU SITUAÇÃO AGRADÁVEL»

« RECONHECER SINAIS INDICADORES DE PERIGO»

«ORIENTAR-SE ESPACIAL E TEMPORARIAMENTE»

"Marius sentia uma curiosidade enorme, sentia que aquele curso também era para ele."

Fried:
“– Fazemos cartazes que depois colamos nas paredes (…) Se fizéssemos um cálculo do ritmo a que antes se caminhava pelas cidades e comparássemos com a velocidade actual concluiríamos que as pernas acompanham a evolução técnica: está tudo mais rápido e as pernas não são excepção; e é por causa desta velocidade que os cartazes são indispensáveis, e bons cartazes, boas imagens, boas frases, são elas que obrigam a parar, a parar durante algum tempo (…)"

"(…) a memória está mais ligada ao bom observador no espaço do que ao bom observador no tempo, o ritmo do passo aumentou muito mas a imobilidade é que é importante. Não podemos observar enquanto fugimos."
 
«HIGIENE, MOTRICIDADE FINA, REAGIR A ESTÍMULOS TÁCTILO-CINESTÉSICOS». Eu por vezes ainda não sei isto, disse Fried: a melhor maneira de reagir a um soco é outro soco, outras vezes é fingir que não se tem força para responder, «ADQUIRIR HÁBITOS À MESA, REAGIR A INSTRUÇÕES GESTUAIS E VERBAIS, REAGIR À SEXUALIDADE DE MODO SOCIALMENTE ACEITÁVEL, REALIZAR TRABALHOS COM MATÉRIAS METÁLICAS, TRATAR DE ANIMAIS,  e esta esta a seguir, sim, é difícil, quantos de nós conseguiremos?; e Fried leu: «OCUPAR OS SEUS TEMPOS LIVRES DE MANEIRA ADEQUADA», você consegue fazer isto, perguntou-me Fried, e eu sorri com a pergunta, e sim, claro, aquele método de aprendizagem e educação de pessoas com deficiência mental fazia-me pensar em quantos de nós não teriam um qualquer problema, bem mais leve, é certo, mas quantos de nós, por exemplo, saberíamos «OCUPAR OS TEMPOS LIVRES DE MANEIRA ADEQUADA»?

“Avançámos. Todos os quartos tinham uma placa metálica, ligeiramente acima do olho de vigia, com o nome (…) o nosso era AUSCHWITZ.”
“(…) Marius abre a porta, roda a maçaneta para a esquerda, um olhar rápido nas últimas letras WITZ (..)

*nota:    Traduzido do alemão "witz" significa "piada".

quinta-feira, 21 de dezembro de 2017

Talvez uma mensagem de Natal

A última tira de fita-cola. Depois de colocados os presentes junto à árvore de Natal ela pára. Um leve suspiro. Sentada no sofá observa a árvore de Natal e lembra-se que nunca pensou quem terá inventado o Pai Natal. Mas agora o mais importante é descansar porque o que lá vem, não é brincadeira. Amanhã, todo um dia para preparar a ceia da consoada, das entradas às sobremesas. Que sorte a dela, esta de mulher. A dela e a da filha, que tem de ajudar.
Para ele as coisas parecem bem mais simples. O carro dela tem qualquer coisa que não está bem. Ele olha, mexe, mas não sabe. Amanhã ele vai ao mecânico. Que sorte a dele, esta de homem. A dele e a do filho, que tem de ajudar.
Mas tudo bem, o dia passou, a consoada chegou. Ansiosamente, os filhos, "Já podemos abrir as prendas?", "Não, porque ainda não é meia noite". Mais cinco minutos, "Já podemos abrir as prendas?", "Têm de esperar mais um pouco!". E consoada adentro lá se vão cortando mais umas fatias de bolo, bebendo um copo ou outro para digestivo, sacudindo as camadas de açúcar dos fritos. "Já podemos abrir as prendas?"
Meia noite. Os pequeninos, eléctricos. São as prendas dos pais, dos avós, dos tios e tias. As prendas não se desembrulham, rasgam-se. A filha recebe um conjunto de utensílios de cozinha, duas bonecas, uma com um menino doente para cuidar e a outra uma princesa, mais um puzzle de princesas, e, claro, um conjunto cor-de-rosa a simular o lar de uma família muito feliz, com todos os utensílios úteis e necessários para a limpeza da casa. O filho recebe um conjunto de carros, garagem e lavagem, dois super-heróis, mais um puzzle de super heróis, e um conjunto  tropas, aviões, barcos de guerra.
O menino olha para as prendas da mana, triste. Pega na boneca doente. "Não, isso não é para ti, é para a mana", diz a mãe, "os meninos não brincam com bonecas".
A menina e o menino. Brincam. Com os carros, com as tropas. O pai, "Então, não queres brincar com as tuas bonecas? Olha aqui estas coisas da cozinha tão giras?! As meninas brincam com bonecas, não brincam com guerreiros, isso é para meninos!"
E, Natal após Natal, contribuímos todos mais um bocadinho para as desigualdades de género, que quase todos os dias nos queixamos. Somos nós que mostramos e que dizemos às crianças o que se espera delas. A culpa não é só da sociedade, é nossa. Se oferecemos conjuntos de cozinha a meninas não nos podemos admirar que elas interiorizem que isso é o certo. Se dizemos aos meninos que as bonecas são para meninas não nos podemos queixar que eles não aprendam a cuidar dos outros. Os brinquedos são dos maiores instrumentos de reprodução de desigualdades de género, de mentalidades, de ambições, de expectativas. Se dizemos aos meninos para brincar com ferramentas, não nos podemos admirar que queiram ser construtores ou engenheiros, se lhes damos uma bola enquanto a menina foi com a mãe às compras, não nos podemos admirar que os homens só pensem em bola e as mulheres a gerir a despensa. Se dizemos às meninas para vestir e cuidar de bonecas não nos podemos queixar que quando crescerem e tiverem os seus filhos, teus netos, são as mães a irem com os filhos ao médico. Se damos princesas às meninas e super heróis aos meninos não se admirem que as raparigas sejam julgadas pela sua beleza e os rapazes pelo domínio e poder.
Até aos três anos os brinquedos são praticamente unisexo. A partir dessa idade os fabricantes de brinquedos sabem que as crianças desenvolvem as suas percepções sobre o mundo, iniciando a sua socialização. Os fabricantes apenas exploram as nossas ideias sobre o mundo, eles sabem que somos nós a distinguir meninos de meninas e vendem-nos o que nós queremos comprar. Há diferenças biológicas e psicológicas entre homens e mulheres, mas também há diferenças sociais e aqui a culpa também é nossa, tua e minha. Não nos podemos só queixar.
Os brinquedos que damos às crianças são para elas um ensinamento. Um ensinamento do que existem dois mundos, um mundo para cada um deles.
Feliz Natal.

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