segunda-feira, 20 de maio de 2013

Pelas Arábias - Adeus Qatar






Preciso de terminar e deixar para trás as aventuras nas Arábias. Há três semanas que voltei. Sim, voltei. Esta é a última mensagem desta aventura, e só a escrevo para fechar. Porque já estou em Portugal e agora tenho um sorriso. Porque já estou em Portugal, já estou. Porque já não estou lá. Se apenas tivesse uma palavra para descrever o meu último ano no Médio Oriente, dir-vos-ia incolor. Um ano incolor. Onde não existiu nem a cor nem a escuridão, um ano neutro como daqueles que não contam. Não foi difícil decidir apesar de, cá, o futuro ser uma incógnita. Já não é. Já sei. E mesmo assim decidiria voltar. Tentei escrever nos últimos dias em que ainda lá estava. Mas não fui capaz. Inventei muitos textos: quando me sentava no sofá e pensava, quando olhava pela janela, quando caminhava para o supermercado à hora de almoço ou no fim-de-semana. Mas nunca me lembrei dessas palavras quando podia escrever.
Alguns colegas continuam lá, outros também regressaram. Os que regressaram perguntavam-me se eu queria ir ao souk comprar lembranças. Não, não quis. Que lembranças me podem dar os objectos comprados num dia qualquer, sem qualquer significado para comigo, para com os dias que lá passei? Então, nesses dias, sentava-me à beira da cama, junto à mesa-de-cabeceira. Abria a gaveta. Lá de dentro tirava um envelope endereçado à minha morada do Qatar e escrita com a letra do meu pai. Eu tinha-lhe pedido para me enviar uns cartões. Ele enviou. Eu tirei os cartões, mas, quando fui para deitar o envelope no lixo, olhei e vi. Vi a distância entre mim e a minha família, a minha casa e os meus amigos. Talvez porque esse envelope tenha percorrido toda essa distância. Talvez porque esse envelope seja tudo menos distância. E guardei. Porque as lembranças só serão lembranças se um dia nos trouxeram lembranças. E nesse envelope tenho todas as minhas lembranças. Porque, quando o vejo, recordo-me onde estava, mas mais importante, como estava, com quem e com quem não estava. E assim, são todas as outras lembranças de todos os outros lugares onde estive.















Fiz as malas, empacotei caixotes, despedi-me. Percorri a casa vazia e disse-lhe adeus porque também digo adeus às casas. Sim. Digo. Para isso, esperava até ficar sozinho em casa. Então, percorria o meu quarto, o corredor, a sala. Sentava-me no sofá, levantava-me, espreitava pela janela, voltava para o quarto absorvendo pela última vez o silêncio com que vivi no último ano. Escutava os sons da casa. Escutava os sons lá de fora, que eram também os sons do silêncio daquela casa, porque silêncio são tons os sons a que nos acostumamos e que, sem eles, estranhamos. Quando espreitava pela janela não via o que estava lá fora. Via a transparência do ano que ficou para trás, via a opacidade do que poderia vir à frente. E voltava a sentar-me no sofá a ler um livro que fechava passados poucos minutos, porque eu não estava lá.
A caminho do aeroporto alguns diziam adeus. Adeus Doha, adeus Qatar, e já do outro lado da baia, adeus West Bay. Adeus para sempre. E eu. Suspirei. E lá disse: “Não digam isso. Há três anos disse o mesmo do Dubai. Disse que só voltaria passados vinte anos e só se fosse fazendo escala a caminho da Austrália! Vejam bem que, já lá voltei quatro vezes!”
Cumpri os objectivos que há um ano me fizeram decidir ir. Por isso estou feliz. Agora, sei que era hora de voltar, hora de me reencontrar. Porque se há coisa que eu possa dizer do Médio Oriente é que me sinto estranhamente fora de mim, perdendo-me lentamente.
Então, nesses momentos, abria a gaveta da mesa-de-cabeceira e um simples envelope recordava-me das lembranças que ainda tenho de mim. E voltava a encontrar-me, relembrando-me. Porque as lembranças só serão lembranças se um dia nos trouxeram lembranças. Adeus Qatar, adeus Médio Oriente.











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