A Fábula das Cidades Encantadas
Ontem
participei num seminário na minha área profissional. Ao todo, cerca de dezoito, vinte participantes, sentados em mesas de três. O
seminário, não era exactamente um seminário, mas mais uma
propaganda comercial para venda de produtos do fabricante que
promoveu o tal seminário. Eu, que não costumo ter um elevado grau de concentração nestas palestras, até me estava a a aguentar sem
fechar a pestana, assim dizendo. Ouvia pormenores técnicos dos
produtos em questão, apoiados por uma apresentação visual
projectada sobre uma tela branca. Para auxiliar a apresentação, forneceram-nos o conteúdo dos slides, mas impressos a preto e branco. Quando o locutor quis demonstrar um
exemplo prático dos seus produtos, no slide apareceu
a figura de uma cidade como daquelas figuras das cidades nos livros
da escola primária, onde existe sempre e sempre um rio a descer a
montanha, e, no vale, lá em baixo, casas de uma lado e edifícios
industriais do outro. À volta da cidade tudo é verde, muito verde,
e, longe da cidade, a representação das coisas que ficam longe das cidades a completar a tal figura. No breve espaço de tempo
entre o aparecimento daquela figura e o começo da explicação do
locutor, e à boa maneira de um filme de ficção científica,
senti-me a deslizar por uma anomalia cósmica, um salto na malha
espaço-tempo, num mar plasmático onde a
gravidade não existe, e, repentinamente, estamos no mesmo lugar mas numa outra
época. Então, mas onde estava eu? Após essa fracção de segundo,
pensava eu, que, estava sentado na mesa da sala de aula da minha
escola primária. Talvez, fosse a hora da disciplina de Estudos
Sociais, e, a professora, com o precioso auxilio de um pau apontador,
começaria a descrever-nos que as cidades tinham crescido junto aos rios,
porque, além de facilitar o acesso à água, eram, sem dúvida, uma
essencial via de comunicação, podendo os habitantes daquela cidade,
trocar mercadorias com os habitantes de outra cidadezinha ao longo daquele curso de água. Mas, para minha surpresa, não foi isto que o
locutor balbuciou momentos depois. Ainda não percebi se por momentos
estranhei aqueles corpos grandes presentes na sala, sentados nas
cadeiras como eu, e que para aquela minha idade, apresentavam uma
estranha aparência adulta: rostos com barba, seios salientes. Desiludi-me, mas não deixei de pensar, lembrando-me que, já antes,
muito antes, tinha pensado em algo muito coincidente, porque, na
minha profissão, é com frequência que me confronto com rabiscos de
arquitectos. Muitos desses rabiscos podem ser lugares ou partes de
cidades, transformados em linhas e cores vivas, não fossemos nós
sempre crianças, e, não gostassem as crianças de cores vivas, não
fossem afinal as crianças ainda vivas vivas vivas. Muitos desses rabiscos
tentam vender-se, apresentando uma imagem encantada do pós-erguido,
uma representação bem mais detalhada das figuras das cidades
encantadas dos livros da escola primária. Ora, quando eu era
pequeno, acreditei na história d'A Fábula das Cidades Encantadas e
pensava que, um dia, quando fosse grande, viveria numa cidade
encantada, onde as coisas estão tão bem organizadas e pintadas como
nas maquetas, e como em figuras de livros da escola primária. O que me
espanta, não é o facto de estas figuras aparecerem nos livros da
escola primária, mas sim, ainda serem utilizadas por adultos para
tentar vender a outros adultos! Ora, não sabemos nós, que, as cidades encantadas não existem? Ou será que existem? É este o meu
dilema. Hoje, que escrevo, está um dia de sol e é Primavera. Lá
fora, o céu é de azul esperança. Procuro o encanto nas coisas da
cidade, nos prédios sujos, nos carros mal estacionados, nas pessoas apressadas, sempre com pressa, e descubro que, as cores das ruas não
conseguem imitar as cores vivas e a perfeição dos livros. Mas não me desiludo.
Procuro também os verdes, longe, nos montes que rondam esta cidade,
e procuro também sinais de um sorriso, descobrindo que, os livros não
são capazes de imitar a vivacidade dos sentidos tal como o aliviante toque de uma brisa e a morna alegria de
um sorriso. E encontro dentro de mim a vontade de ver uma cidade
encantada, de ver nela tudo o que é colorido, aproveitando o sol
ameno para me reconfortar. Sabemos que não vivemos em cidades
encantadas mas, talvez, precisemos de acreditar, mais do que as
crianças acreditam, que as cidades encantadas existem e que não é
falsa essa fábula que nos contaram numa sala da escola primária.
Talvez, por isso, continuamos a rabiscar figuras de cores vivas numa
organização perfeita, que, de certa forma, queremos tanto que
existam, que, no fim, lá nos convencemos a comprar essa fábula,
como se fosse um bom livro de
"Histórias de Crianças para
Adultos: Volume 1 - A Fábula das Cidades Encantadas".