quinta-feira, 30 de maio de 2013

A Fábula das Cidades Encantadas

Ontem participei num seminário na minha área profissional. Ao todo, cerca de dezoito, vinte participantes, sentados em mesas de três. O seminário, não era exactamente um seminário, mas mais uma propaganda comercial para venda de produtos do fabricante que promoveu o tal seminário. Eu, que não costumo ter um elevado grau de concentração nestas palestras, até me estava a a aguentar sem fechar a pestana, assim dizendo. Ouvia pormenores técnicos dos produtos em questão, apoiados por uma apresentação visual projectada sobre uma tela branca. Para auxiliar a apresentação, forneceram-nos o conteúdo dos slides, mas impressos a preto e branco. Quando o locutor quis demonstrar um exemplo prático dos seus produtos, no slide apareceu a figura de uma cidade como daquelas figuras das cidades nos livros da escola primária, onde existe sempre e sempre um rio a descer a montanha, e, no vale, lá em baixo, casas de uma lado e edifícios industriais do outro. À volta da cidade tudo é verde, muito verde, e, longe da cidade, a representação das coisas que ficam longe das cidades a completar a tal figura. No breve espaço de tempo entre o aparecimento daquela figura e o começo da explicação do locutor, e à boa maneira de um filme de ficção científica, senti-me a deslizar por uma anomalia cósmica, um salto na malha espaço-tempo, num mar plasmático onde a gravidade não existe, e, repentinamente, estamos no mesmo lugar mas numa outra época. Então, mas onde estava eu? Após essa fracção de segundo, pensava eu, que, estava sentado na mesa da sala de aula da minha escola primária. Talvez, fosse a hora da disciplina de Estudos Sociais, e, a professora, com o precioso auxilio de um pau apontador, começaria a descrever-nos que as cidades tinham crescido junto aos rios, porque, além de facilitar o acesso à água, eram, sem dúvida, uma essencial via de comunicação, podendo os habitantes daquela cidade, trocar mercadorias com os habitantes de outra cidadezinha ao longo daquele curso de água. Mas, para minha surpresa, não foi isto que o locutor balbuciou momentos depois. Ainda não percebi se por momentos estranhei aqueles corpos grandes presentes na sala, sentados nas cadeiras como eu, e que para aquela minha idade, apresentavam uma estranha aparência adulta: rostos com barba, seios salientes. Desiludi-me, mas não deixei de pensar, lembrando-me que, já antes, muito antes, tinha pensado em algo muito coincidente, porque, na minha profissão, é com frequência que me confronto com rabiscos de arquitectos. Muitos desses rabiscos podem ser lugares ou partes de cidades, transformados em linhas e cores vivas, não fossemos nós sempre crianças, e, não gostassem as crianças de cores vivas, não fossem afinal as crianças ainda vivas vivas vivas. Muitos desses rabiscos tentam vender-se, apresentando uma imagem encantada do pós-erguido, uma representação bem mais detalhada das figuras das cidades encantadas dos livros da escola primária. Ora, quando eu era pequeno, acreditei na história d'A Fábula das Cidades Encantadas e pensava que, um dia, quando fosse grande, viveria numa cidade encantada, onde as coisas estão tão bem organizadas e pintadas como nas maquetas, e como em figuras de livros da escola primária. O que me espanta, não é o facto de estas figuras aparecerem nos livros da escola primária, mas sim, ainda serem utilizadas por adultos para tentar vender a outros adultos! Ora, não sabemos nós, que, as cidades encantadas não existem? Ou será que existem? É este o meu dilema. Hoje, que escrevo, está um dia de sol e é Primavera. Lá fora, o céu é de azul esperança. Procuro o encanto nas coisas da cidade, nos prédios sujos, nos carros mal estacionados, nas pessoas apressadas, sempre com pressa, e descubro que, as cores das ruas não conseguem imitar as cores vivas e a perfeição dos livros. Mas não me desiludo. Procuro também os verdes, longe, nos montes que rondam esta cidade, e procuro também sinais de um sorriso, descobrindo que, os livros não são capazes de imitar a vivacidade dos sentidos tal como o aliviante toque de uma brisa e a morna alegria de um sorriso. E encontro dentro de mim a vontade de ver uma cidade encantada, de ver nela tudo o que é colorido, aproveitando o sol ameno para me reconfortar. Sabemos que não vivemos em cidades encantadas mas, talvez, precisemos de acreditar, mais do que as crianças acreditam, que as cidades encantadas existem e que não é falsa essa fábula que nos contaram numa sala da escola primária. Talvez, por isso, continuamos a rabiscar figuras de cores vivas numa organização perfeita, que, de certa forma, queremos tanto que existam, que, no fim, lá nos convencemos a comprar essa fábula, como se fosse um bom livro de
 "Histórias de Crianças para Adultos: Volume 1 - A Fábula das Cidades Encantadas".

segunda-feira, 20 de maio de 2013

Pelas Arábias - Adeus Qatar






Preciso de terminar e deixar para trás as aventuras nas Arábias. Há três semanas que voltei. Sim, voltei. Esta é a última mensagem desta aventura, e só a escrevo para fechar. Porque já estou em Portugal e agora tenho um sorriso. Porque já estou em Portugal, já estou. Porque já não estou lá. Se apenas tivesse uma palavra para descrever o meu último ano no Médio Oriente, dir-vos-ia incolor. Um ano incolor. Onde não existiu nem a cor nem a escuridão, um ano neutro como daqueles que não contam. Não foi difícil decidir apesar de, cá, o futuro ser uma incógnita. Já não é. Já sei. E mesmo assim decidiria voltar. Tentei escrever nos últimos dias em que ainda lá estava. Mas não fui capaz. Inventei muitos textos: quando me sentava no sofá e pensava, quando olhava pela janela, quando caminhava para o supermercado à hora de almoço ou no fim-de-semana. Mas nunca me lembrei dessas palavras quando podia escrever.
Alguns colegas continuam lá, outros também regressaram. Os que regressaram perguntavam-me se eu queria ir ao souk comprar lembranças. Não, não quis. Que lembranças me podem dar os objectos comprados num dia qualquer, sem qualquer significado para comigo, para com os dias que lá passei? Então, nesses dias, sentava-me à beira da cama, junto à mesa-de-cabeceira. Abria a gaveta. Lá de dentro tirava um envelope endereçado à minha morada do Qatar e escrita com a letra do meu pai. Eu tinha-lhe pedido para me enviar uns cartões. Ele enviou. Eu tirei os cartões, mas, quando fui para deitar o envelope no lixo, olhei e vi. Vi a distância entre mim e a minha família, a minha casa e os meus amigos. Talvez porque esse envelope tenha percorrido toda essa distância. Talvez porque esse envelope seja tudo menos distância. E guardei. Porque as lembranças só serão lembranças se um dia nos trouxeram lembranças. E nesse envelope tenho todas as minhas lembranças. Porque, quando o vejo, recordo-me onde estava, mas mais importante, como estava, com quem e com quem não estava. E assim, são todas as outras lembranças de todos os outros lugares onde estive.















Fiz as malas, empacotei caixotes, despedi-me. Percorri a casa vazia e disse-lhe adeus porque também digo adeus às casas. Sim. Digo. Para isso, esperava até ficar sozinho em casa. Então, percorria o meu quarto, o corredor, a sala. Sentava-me no sofá, levantava-me, espreitava pela janela, voltava para o quarto absorvendo pela última vez o silêncio com que vivi no último ano. Escutava os sons da casa. Escutava os sons lá de fora, que eram também os sons do silêncio daquela casa, porque silêncio são tons os sons a que nos acostumamos e que, sem eles, estranhamos. Quando espreitava pela janela não via o que estava lá fora. Via a transparência do ano que ficou para trás, via a opacidade do que poderia vir à frente. E voltava a sentar-me no sofá a ler um livro que fechava passados poucos minutos, porque eu não estava lá.
A caminho do aeroporto alguns diziam adeus. Adeus Doha, adeus Qatar, e já do outro lado da baia, adeus West Bay. Adeus para sempre. E eu. Suspirei. E lá disse: “Não digam isso. Há três anos disse o mesmo do Dubai. Disse que só voltaria passados vinte anos e só se fosse fazendo escala a caminho da Austrália! Vejam bem que, já lá voltei quatro vezes!”
Cumpri os objectivos que há um ano me fizeram decidir ir. Por isso estou feliz. Agora, sei que era hora de voltar, hora de me reencontrar. Porque se há coisa que eu possa dizer do Médio Oriente é que me sinto estranhamente fora de mim, perdendo-me lentamente.
Então, nesses momentos, abria a gaveta da mesa-de-cabeceira e um simples envelope recordava-me das lembranças que ainda tenho de mim. E voltava a encontrar-me, relembrando-me. Porque as lembranças só serão lembranças se um dia nos trouxeram lembranças. Adeus Qatar, adeus Médio Oriente.











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