domingo, 28 de outubro de 2012

O barco batizado Esperança - PARTE V - A Esperança

Elena sentia-se inebriada. Para ela era como se um ajuntamento de crianças num pátio de recreio tivesse sido a melhor invenção de toda a revolução industrial. Nada nada nada, até agora, a tinha feito sentir-se, simultaneamente no seu passado, no presente, e no futuro. Nada. Esta invenção do século XX, um pátio de recreio para as crianças brincarem. Brincarem. E depois, depois o som longínquo de muitas crianças a brincarem, tão longínquo como a nossa infância, tão real como tu e eu, tão ilusório como o futuro. É esta, para Elena, a melhor invenção que a revolução industrial proporcionou. Elena chamou-lhe, a máquina do tempo.Entre o silencio que a revolução industrial desinventou, Kostas e Elena mantiveram-se ensimesmados no interior do seu tempo e da sua história.. Até que. Até que:
«Elena?»
«Sim?»
«Sabes como eu imagino a esperança?»
«Não. Conta-me» E sorriu.
«A esperança é como um rio que nasce na montanha, e nós somos como os tripulantes de um barco baptizado de Esperança. E nesse barco iremos descer o rio até ao mar. Lá em cima, no monte, na nascente, na serra, tudo é puro e belo, e temos o mundo nas nossas mãos, tal e qual como as crianças. Somos pequeninos, e admiramos o mundo, que, lá de cima, é belo. E lá, onde o rio nasce, ainda podemos apreciar a montanha, os vales, e respirar, respirar, principalmente respirar. Mas é uma ilusão. Quando chegamos lá a baixo a vista não é a mesma que a lá de cima. E depois temos de descer o rio da montanha até ao grande rio lá em baixo, onde aflui o nosso rio da montanha. Começamos a descer e, aos poucos, aos poucos tudo é cada vez mais rápido. Tudo começa a ser mais difícil. O rio da montanha é rápido, não controlamos nada e, só poucas vezes, temos tempo para parar e olhar, apreciar. A paisagem, não temos o tempo que queríamos para a paisagem.O mundo. Controlamos os nosso barco, mas não controlamos o rio.Nesta descida tudo vale para não virarmos, não tombarmos e, principalmente, para sermos os primeiros, os primeiros a encontrar o rio da montanha com o percurso mais curto até ao grande rio lá em baixo, onde desaguaremos. Porque, porque depois de desaguarmos no grande rio, ai, e só ai, voltaremos a encontrar alguma tranquilidade, como a que conhecemos lá em cima. Alcançar a nossa esperança é alcançar o grande rio lá em baixo onde, então, poderemos tranquilamente apreciar a viagem até à foz. Na foz, desaguaremos no mar, e lá ninguém sabe o que encontraremos, se um mar agitado, se uma mar calmo. O mar, é a nossa velhice. É deixarmo-nos à deriva, depois da viagem, sem mais fôlego para nada mais alcançar. Tudo já é longe de mais, tudo ficou para trás. Fizemos a nossa viagem num barco baptizado de Esperança.»
Na verdade, um dos maiores impulsos do ser humano é a esperança. E ao tirarem-nos a esperança tiram-nos o alimento para acreditar que poderemos ser felizes. Haja esperança, porque a esperança é tão natural e necessária num adulto como a ilusão o é numa criança.
Sob a leve harmonia da infância, Kostas e Elena levantaram-se do banco de jardim.
«Elena?»
«Sim?»
«Já não somos crianças, pois não?»
Elena, sorriu.

O barco batizado Esperança - PARTE IV - A Ilusão

Caminhavam pelas torrentes de ruas daquele morro nos arredores de Atenas, tal como torrentes de água que se formam pelas encostas dos montes serpentinamente. Kostas chegara a casa a meio da manhã. Elena, esperava-o, ou esperava, preocupadamente em casa, enroscada nas almofadas do sofá. Tentara ligar-lhe para o telemóvel mas apenas percebera que Kostas deixara o telemóvel em cima do móvel no hall. Esquecera-se de lhe dizer que de manhã passaria pelos estaleiros navais para arrumar e trazer os seus bens pessoais. Depois de almoço, Elena, sugeriu passearem um pouco pelos bairros.. Sentia Kostas nervoso e queria acalmá-lo. Calcorrearam ruas feitas das tais torrentes. À medida de que se aproximavam de um infantário ouviram crescer o ruído simultâneo de muitas crianças no pátio de recreio, ao mesmo tempo que, decresciam os ruídos do bairro. Perto, já perto, aquele ruído não parecia mais do que uma imensa confusão de barulhos irritantes, desconexos, molestos. Hoje não. De facto, a gritaria de um recreio de infantário, perto, bem perto, consome o mais banal dos pensamentos. Hoje não. Continuaram, pelas tais torrentes de ruas. Primeiro a descer, depois a subir. Subiram, subiram, subiram, entre passeios, carros mal estacionados, condutores arrojados. Lá em cima um jardinzinho com um miradouro, abraçando os subúrbios da cidade. Enquanto subiam decresciam os barulhos do bairro que imitavam os barulhos de uma cidade. Decresciam. Leve, levemente, caminhavam para a tranquilidade do jardim e, assim, contagiados, sentiram pouco a pouco desvanecer-se alguma da tensão acumulada. Quando chegaram ao jardim já nada ouviam, a não ser a sua voz interior e os seus pensamentos que, ainda, os assombravam. Ao entrarem no jardim sentiram de imediato a voz das árvores e do vento, e do vento entre as árvores. Continuaram a caminhar de mão dada, até a um ponto com vista, à medida que outro som crescia leve, levemente, misturando-se à harmonia relaxante das árvores e do vento. E esse som crescia. Por momentos não se aperceberam de onde vinha nem o que era. Mas não incomodava, pelo contrário. Aproximaram-se cada vez mais, e mais, do ponto com vista, e identificaram um pequeno vale entre o morro do jardim e um outro morro do lado de lá. O som, o som que crescia vinha de lá, e sobre eles exercia um efeito relaxante, pacificador, e onde todos os seus pensamentos e assombros, de repente, se diluíram, desaparecendo. Até que. Até que, decorrido algum tempo, perceberam que aquele som não era mais do que o som das crianças no pátio do recreio, do infantário pelo qual tinham passado. De facto, ao longe, do outro lado do vale, o som acumulado das crianças, que de perto era irritante para Kostas e Elena, transformara-se numa leve brisa de vento, num leve restolhar sobre as folhas das árvores. E, momentaneamente, sentiram-se bem, como nada os infortunasse, como nada os preocupasse. A serenidade. Sentaram-se sob a melodia daquela tarde de jardim. Elena pensava que nunca, nunca, nunca, o barulho das crianças lhe tivera tal impacto, tal efeito. Percebera então, que, há medida que se tinham aproximado daquela vista, o som afastado das crianças no recreio era como a som afastado da sua infância. Na verdade, é difícil para nós, perto de nós, voltarmos a sentir-mo-nos crianças. Mas ao longe, ao longe, aquele som afastado parecia tão real como o afastamento de Elena para com a sua infância. E assim, era como se regressasse à infância. Era esse o feitiço do som.
«Kostas?»
«Sim?»
«Já reparaste que o barulho longínquo da crianças tem um efeito sobre nós?»
«Como assim?»
«Este ressoar suave das crianças no pátio da escola, ecoa em mim como as lembranças da minha infância. Sinto-me bem, descontraída, sinto-me como uma criança. E já reparaste que esse som, leva-nos ao passado, ao futuro e ao presente?»
«Não estou a perceber.....»
«Leva-nos ao passado porque nos faz lembrar quando éramos crianças, e desperta em nós, lembranças escondidas, sentimentos há muito perdidos. Faz-nos estar no presente porque, como agora, distraí-nos, esvaíra-nos dos problemas dos nossos dias, refresca-nos a alma, faz-nos lembrar de nós próprios. E leva-nos ao futuro porque faz-nos acreditar na esperança, que há sempre esperança!»
Silêncio.
E depois do silêncio, Elena:
«E sabes porque nos faz lembrar que há sempre esperança?»
«Porque as crianças são a esperança de um futuro melhor?»
«Não! As crianças não podem ser a esperança de um futuro melhor. Isso é um engano nosso. Porque um dia, as crianças serão como nós, serão corrompidas como nós fomos, como todos somos. Isso de que a esperança está nas crianças é uma ilusão! A ilusão é que vive nas crianças, não a esperança. Quando eras criança tinhas esperança em alguma coisa ou tinhas ilusões?»
«Ilusões.»
«Sim! Ilusão. As crianças não sabem o que é a esperança porque só depois de saberem que tudo o que imaginam é ilusão, é que conhecem a esperança. E esperança é uma transformação da ilusão. Portanto, quando olhamos para as crianças não devemos ter esperança que o futuro será melhor, só por elas serem crianças. Mas devemos perceber que as crianças estão aqui para nos lembrar que houve um dia em que tivemos ilusões, mas que agora só podemos ter esperança. A esperança está em nós, não nas crianças!»
«E onde é que tu queres chegar com isso? Não te estou a entender. Nem a ilusão, nem a esperança me dão, nem resolvem, nada.»
«O que quero dizer é que, as crianças de hoje transformarão as suas ilusões em esperança, quando crescerem, assim como nós, um dia, transformámos as nossas. O reino da criança é a imaginação e a ilusão. O reino dos adultos é a esperança. As ilusões das crianças de hoje são diferentes das nossas ilusões, porque, mesmo as crianças, sabem construir ilusões realísticas. Elas baseiam o seu futuro com base naquilo que lhes parece alcançável, e com base no mundo que conhecem. Com base no mundo onde crescem. E o mundo onde, hoje, elas crescem é diferente do mundo onde nós crescemos. As crianças ensinam-nos que, tal como elas ajustam as ilusões à realidade onde crescem, também nós deveremos ajustar as nossas esperanças, à nossa realidade. É isso!»

PARTE V - A Esperança

O barco batizado Esperança - PARTE III - A Noite


Elena estava ao telefone, a falar com a sua mãe, quando Kostas entrou em casa. Acenou e ele replicou com um olá pouco convicto. Elena, sentiu uma bala no peito. Mas o que terá acontecido?, foi a primeira coisa que pensou. Do outro lado a sua mãe praguejava sentenças ao seu pai. Ela, há muito que estava farta das queixas da mãe sobre o pai, e só a ouvia por consideração, apesar de, já ter perdido a paciência para os devaneios da mãe. Eles que se entendessem. A sua preocupação por Kostas não a deixou tolerar por muito mais tempo a sua mãe. Ficou preocupada, imediatamente preocupada, muito preocupada. Percebeu imediatamente que qualquer coisa tinha acontecido e só queria despachar a mãe, para saber o que se tinha passado. «O teu pai só pensa nele! Dantes não era assim, não sei o que deu ao homem...», ouvia Elena do outro lado. Disse à mãe que o jantar estava ao lume e que tinha de voltar para a cozinha. Mesmo assim ela disse que voltava a ligar depois do jantar. «....Tenho de te contar mais uma do teu pai!». E assim acabou. Deu uma volta em torno da sala mas não encontrou Kostas. Espreitou pela porta do quarto que estava aberta e viu Kostas deitado na cama olhando para o tecto. Aproximou-se: «O que é que aconteceu?», e demasiado frouxamente ouviu-se, «Vou perder o emprego». Levou imediatamente as mãos à boca e começou a chorar, a soluçar, custando-lhe muito respirar. Kostas levantou-se, colocou o seu braço pelos seus ombros e guiou-a até à cama, onde se sentaram. Elena, colocou as suas mãos sobre as pernas e, Kostas, ia murmurando palavras de conforto que ela escutou mas que não ouviu. Para ela, era como, se, de repente, não existisse uma gota de ar no mundo. Não se aperceberam do tempo que, ali, na cama, ficaram sentados. «O que é que aconteceu?», voltou a perguntar, porque não estava segura do que tinha acontecido. Kostas, disse que era melhor levantarem-se e irem para a sala, porque estariam mais confortáveis no sofá. Kostas levantou-se puxando delicadamente as mãos de Elena. «Vamos». Naquele momento, Elena, já não sabia por que é que lhe custava tanto respirar, duvidando do que se estava a passar e do lugar onde estava, como quando nos sentimos depois de rodopiarmos sobre nós próprios a grande velocidade. Sentaram-se no sofá, com os joelhos a tocarem-se, em triângulo, e Kostas pousou as palmas das suas mãos sobre as de Elena que estavam sobre as suas pernas unidas. «Vou perder o emprego. O Estado não paga à minha empresa. Amanhã já não vou trabalhar.». Elena tinha a cabeça baixa e olhava para o chão querendo disfarçar o tumulto, a confusão e o medo, muito medo que a controlava. Iriam perder a casa? Iriam perder tudo? De que tinham valido todos os sacrifícios dos últimos anos? De que tinha valido renegociar o crédito habitação? De que tinha valido, de que tinha valido, de que tinha valido? Sentiu a esperança a transformar-se em ilusão. Toda a esperança que tinha crescido consigo, e que, acompanhara também o crescimento do seu corpo de menina a mulher, toda a esperança no futuro, na felicidade, numa forma de viver, de uma casa, de filhos, de uma família, metamorfoseou-se em ilusão. Todo o futuro transformou-se numa ilusão que, um dia, chamámos de esperança. Mas as ilusões não acontecem. E ao tirarem-lhe a esperança, deixou de acreditar que poderiam ser felizes. Experimentem esvaziar-se de qualquer esperança. Conseguem imaginar? Perguntem-se, como se sentirão se souberem que amanhã não poderão ser felizes? Que não vos deixam ser felizes, que não vos deixam concretizar tudo o que imaginaram? O ser humano mantém-se porque tem esperança. Porque a esperança alimenta todo o futuro, todo o sacrifício. Mas se um dia vos tirarem a esperança, então, tirar-vos-ão de vós próprios, de nós próprios. Sentiremos que não somos nada e que estamos aniquilados. Sem esperança nada faz sentido. E a esperança é sempre que o dia de amanhã será melhor do que o dia de hoje. Foi assim, esvaziados, depauperados que, Kostas e Elena, passaram o serão no sofá: ele sentado numa ponta do sofá e ela, ela aninhada a seu colo. Não falaram muito, para além de ele lhe ter contado toda a história do dia. Nem ela nem ele conseguiam, nem queriam, pensar, por agora, nas consequências. Elena sempre admirara em Kostas a sua capacidade para não se lamentar nos dias das desgraças. Na hora das noticias, no dia das notícias, sempre se mantivera frio, calculista, e sempre a conseguira apoiar. Pelo contrário, ela, sempre fora mais fraca ao receberam as noticias, mas depois, depois do impacto, depois de chorar e de se lamentar sempre fora mais forte. Nunca ficou no dia atrás. Assim, ela sabia que,  Kostas, amanhã, estaria de rastos, como se sofresse um ferimento lento. E amanhã seria ela a dar-lhe a mão. Quando estavam no sofá a mãe de Elena telefonou. Tiveram de atender porque, se não, ela ficaria preocupada. Elena atendeu com uma voz morta, e do outro lado ouviu-se, «O que é que aconteceu?!». Disse-lhe que Kostas também perdera o emprego. Do outro lado escutou-se, por instantes, o silêncio,
                                                          até que, «O quê??? O que é que aconteceu? Ai meu Deus......».
Não era muito avançada a noite quando se foram deitar. Elena estava mais calma e o choque inicial desvanecera-se. Kostas estava na cozinha e comia qualquer coisa ao balcão. Elena aproximou-se por detrás abraçando-o pelo peito. Elena só queria ir dormir, não queria falar de nada. Esquecer por umas horas e só amanhã acordar para uma nova realidade. Deitaram-se e ficaram juntos, perto um do outro, no seu calor. Elena sabia que Kostas provavelmente não iria pregar olho. Aquela ferida lenta iria alastra-se e no dia seguinte estaria em carne viva. Agarrou-lhe a mão e depois adormeceu. Acordou a meio da noite preocupada com Kostas. No dia em que fora despedida fora acordada a meio da noite pelo zumbido da campainha de casa. Quando abrira os olhos Kostas não estava na cama. Levantara-se, apressada, e não fora capaz de quantificar o receio que tinha. Quando espreitara pela janela, vira Kostas acompanhado de um polícia. Kostas tinha saído com o carro, mas adormecera ao volante. Felizmente, adormeceu quando estava parado num semáforo.
Por isso custou-lhe a dormir. Quando acordou a meio da noite e não sentiu o seu toque aterrorizou-se. Virou-se. Kostas olhava o tecto, «Dorme», disse ele. Dormiu tranquilamente. Acordou pouco depois de amanhecer e não viu Kostas. Sentiu novamente dificuldade em respirar. Gritou, «Kostas?!». Kostas não estava em casa.


PARTE IV - A Ilusão

PARTE V - A Esperança

O barco batizado Esperança - PARTE II - O Fim da Tarde




PARTE II - O FIM DE TARDE





Era quase fim de tarde e Kostas estava sentado numa esplanada contemplando uma praceta de Atenas. Estava sozinho, e, de vez em quando, elevava o braço, trémulo, para bebericar um pouco do frapé que tinha sobre a mesa. Olhava para a pequena praceta. Era costume sentar-se ali com alguns amigos, alguns dias da semana, depois do trabalho. Mas hoje estava demasiado frustrado, demasiado desiludido e, apoderara-se em si uma certa animosidade. Nem a imagem da capela ortodoxa no centro da praceta lhe preenchia uma ínfima esperança. Da praceta contemplava o futuro: um recuo imenso em relação ao futuro de ontem, porque toda a esperança se esvaecera de si. Perdera a esperança sobre a esperança, quando o futuro não se imagina melhor do que aquele que temos hoje. É para isso que nos serve a esperança. O discurso no escritório retumbava-lhe pelas vísceras. Retumbava. Retumbava. Quando entrou no pequeno escritório da sede, que ficava num bairro residencial, sentiu imediatamente um ambiente funesto impregnado. Não trabalhavam lá mais de seis ou sete pessoas, mas naquele dia estavam lá, pelo menos, cerca de trinta. Não foram só os três, colegas do estaleiro naval, foram mais alguns colegas que estavam destacados em outros serviços, noutros locais. A cara do chefe não deixava grande margem para dúvidas, o discurso não se prognosticava amigável.  Kostas olhava à volta, para os seus colegas, mas eles também, de olhos perdidos, suplicantes, provavelmente à procura do mesmo que ele: repostas às perguntas que os assombravam.  O chefe posicionou-se no centro da sala, e eles encostados às poucas paredes livres, a moveis ou, encavalitados em secretárias, tentando arranjar espaço para todos. Começou por agradecer a presença de todos. Uma sala tão pequena, que estavam todos tão apertados que, mesmo só decorridos dez ou quinze minutos de estarem lá dentro já estavam todos a arfar e a suar. Tiveram de abrir as janelas para refrescar o ar. Kostas, sentiu um nervosismo dentro de si como não sentira há muito tempo, aliás, um nervosismo nunca antes sentido, não daquela forma: não seria ele a tomar uma opção sobre si. Foi num ambiente tepidamente gelado, que ouviu a comunicação do chefe, que, após uma introdução atabalhoada, pausada, tartamuda, afirmou que a administração já tinha esgotado todos os mecanismos possíveis, que todas as alternativas  tinham já sido estudadas, mas que, infelizmente, neste momento, era impossível evitar os despedimentos, uma vez que, o Estado não pagava os serviços contratados, faz mais de quatro meses. Reparou na consternação do chefe e acreditou que aquelas palavras e este desfecho não lhe tenham sido fáceis. No fim, o chefe retirou-se, sem antes dizer que podiam ir para casa, que a partir do dia seguinte já não trabalhavam, que mais tarde seriam contactados para a apresentação da proposta de rescisão do contracto. E assim saiu, o chefe, suado, de passo rápido mas curto, para o seu gabinete. Não será necessário dizer que na sala se instalou o caos, a angústia banhadas de lágrimas e lamentos. Kostas ainda conversou um pouco com alguns colegas mas não conseguiu aguentar por muito tempo aquele cenário. Saiu do infausto escritório, decidindo ir sozinho até ao café da praceta, onde pensou que poderia animar-se um pouco. Mas não conseguiu. Pelo contrário. A cada passo que se distanciava daquele escritório parecia que se colocava mais longe da sua vida, a vida que iria perder. E assim, caminhou, até chegar à praceta, sentindo que se afastava cada vez mais de ele próprio, como se, em cada passo, se despegassem de si todos os passos da sua vida. Mas também, não conseguiu afastar a imaginação poeirenta do seu futuro. Chegado à praceta sentou-se na esplanada e pediu um frapé. Enquanto esperava lembrou-se de Elena. Não sabia como lhe contar. Ainda ontem estavam tão aliviados por terem renegociado o crédito habitação, ainda ontem que as coisas pareciam encaminhar-se para melhor. Tudo isso depois de ela ter sido despedida faz mais de um ano. Sofreram muito com o despedimento dela, tiveram de mudar muitos planos e fazer muitos sacrifícios. E agora como lhe dizer que ainda não acabou? Que há pior? Apesar de ter Elena como uma pessoa forte, e de saber que ela o é, sabia que, esta mudança, a iria destabilizar: foi um esforço imenso para renegociar o crédito habitação e para mudar o estilo de vida. Quando se distanciou destes pensamentos já se tinha esquecido que tinha um frapé em cima da mesa. Mas, também, já se tinha esquecido que estava numa praceta de Atenas. A noite caíra. Não enviou nenhuma mensagem, nem telefonou a Elena antes de chegar a casa. Mas já sabia o que ela iria dizer, assim que o visse, porque nunca conseguiu esconder nada dela, nem mesmo disfarçar. Levantou-se, pagou a conta, apanhou o metro e depois o autocarro. Pelo caminho, pensava que teria tempo de descobrir como iria contar-lhe tudo. O problema sabemos que não foi tempo; talvez a sua inépcia a esconder seja o que fosse de Elena. E não descobriu nem uma palavra que suavizasse a desgraça ou que, pelo menos, não a ferisse, pensava ele. Mas como já se disse, já sabia o que ela diria assim que o visse, «O que é que aconteceu?».


PARTE III- A Noite

PARTE IV - A Ilusão

PARTE V - A Esperança

O barco batizado Esperança - PARTE I - A Manhã


PARTE I - A MANHÃ
Ainda existia o azul-noite sobre as montanhas e os subúrbios de Atenas. Numa casa pequena e num quarto pequeno tocou o despertador. Por momentos sentiu-se a incoerência de um corpo, ainda, sensível ao peso da noite. Poucos minutos depois o despertador tocou uma segunda vez e os olhos de Kostas despertaram devagar. Deixou-se ficar mais uns minutos. Aos poucos a consciência. Aos poucos......Levantou-se sem cambalear. Elena mexeu-se e, ocupava, agora, todo o espaço da cama, envisgando-se de sopor. A meia-luz, Kostas, tomou um duche rápido e vestiu-se. Hoje, está bastante bem disposto, e a alvorada não custou. Ontem, desfrutaram de uma noite agradável em casa, depois de saberem que o banco aceitou a renegociação do crédito habitação. Assim, deram-se a uma noite aprazível, no sossego da sala: uma refeição encomendada, dois corpos num sofá, um filme. Kostas desligou a meia-luz e saiu para a sala. Empreendia uma leve satisfação que não é fácil de encontrar quando ainda se acorda sob a cor-da-noite. Mas hoje, o futuro é encarado com mais esperança. Elena é psicóloga e trabalhava no departamento de recursos humanos de uma gigante consultora financeira. Há uns meses a empresa iniciou um processo de reestruturação e Elena foi dispensada. Agora vive do subsidio de desemprego. Kostas é responsável pela logística nos estaleiros navais de Atenas e, apesar, de os trabalhadores do estaleiro contratados directamente pelo Estado não receberem os salários faz seis meses, Kostas não padece de tal infortúnio, uma vez que, é contratado através de uma empresa externa e privada. E mesmo que o seu salário venha a sofrer alguma redução, será suficiente para pagar todas as despesas após a renegociação do crédito. Na sala ainda se descobriam os vestígios da noite anterior: um cobertor sobre o sofá, dois copos sujos a cor-de-vinho tinto sobre a mesa e, algumas migalhas de aperitivos sobre o chão e o sofá. Na cozinha, tomou o pequeno-almoço e preparou a marmita. Olhou pela janela, mas nada viu para além de escuridão. Voltou à sala, e vestiu um casaco de meia-estação que estava pendurado numa cadeira. Por fim, agarrou nas chaves e na carteira que estavam sobre o móvel no hall. Saiu de casa. Sob o olhar, ainda desprendido da noite, caminhou, talvez, uns três minutos, até à paragem do autocarro. Sentia-se embriagado pela frescura da manhã feita cor-de-noite, que já há muito tempo se habituara, quando, ele e Elena, se mudaram para os subúrbios da capital, onde as rendas são mais baratas, mas as viagens mais longas. Na paragem, seis ou sete pessoas, colegas de um rito. Esperou. Conversas de circunstância depois de um bom dia, de um como está, ou simplesmente, sorrisos cordiais, ou um silêncio escuro. Kostas entrou num autocarro, a esta hora, ainda meio ocupado. Durante a viagem a noite transformou-se em dia. Numa paragem desceu, apanhou o metro e, depois de mais uns vinte minutos, talvez trinta, apanhou outro autocarro, este cheio, que o levou até aos estaleiros. Entrou num pequeno gabinete, numa das pontas do estaleiro onde cabiam três secretárias, que partilhava com outros dois colegas, mas que ainda não tinham chegado. O gabinete não era muito iluminado a luz natural porque apenas dispunha de uma pequena janela. Mas, pelo menos, da janela perscrutava-se o mar. Todos os dias, antes de se sentar, no gesto de preparar a cadeira, suspirava de angústia. Era uma cadeira velha, gasta e empenada, naturalmente desconfortável. Faz muito que pedira novos equipamentos para o seu gabinete, mas a administração sempre lhe dissera que não haviam verbas disponíveis. Também, o computador, não passava de uma caixa velha que já mais complicava do que ajudava: o software não podia ser actualizado porque o hardware estava obsoleto, resultando em bloqueios não pouco frequentes e consequente perda de informação, horas de trabalho improdutivas. Depois de pousar a mala, preferiu sair até lá fora, aguardando os seus colegas. Esperou olhando para um velho navio, atracado e a aguardar reparação havia mais de um ano. Até que. Até que à entrada dos estaleiros, lá vinham os seus dois colegas. Kostas acenou e, começou a deslocar-se para juntar-se-lhes a meio do recinto, uma vez que, iriam dirigir-se para o refeitório que ficava num outro edifício do outro lado. No refeitório, outros colegas, desanimados, após meses difíceis, após perdas, lutas, manifestações, que nada nada nada resolveram. Saíram agarrando e bebericando, cada um, um café grego que, até, a mais forte das insónias acordaria. Voltaram para o gabinete, onde, os aguardava uma manhã de farta paciência. Kostas, sentou-se à sua secretária onde um acervo de documentos o intimidavam. Porém, hoje, o contentamento de Kostas impedia-o de se contristar por todas as contrariedades irresolúveis.
Pouco faltava para chegar o meio da manhã quando o telefone sobre a mesa de Kostas tocou em tom de augúrio. Atendeu descontraidamente e, do outro lado, reconheceu a voz rouca mas firme, que anunciava o chefe da sua empresa. Comunicou que os três se deveriam apresentar, nesse mesmo dia, nos escritórios da sede.

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