sábado, 21 de julho de 2012

O buraco negro

De vez em quando há coisas que me fazem lembrar os sonhos de quando eu era criança. Ou, para não vos enganar, de quando o meu corpo ainda era pequeno. Eu pensava que iria viajar pelo espaço inter-estrelar. Eu iria a outras estrelas e outros planetas. Eu iria a outras galáxias. Eu iria viajar por um buraco negro. Eu iria ser um viajante intrépido, em todo o espaço e tempo que desconhecemos. Hoje, se tivesse essa oportunidade não sei se seria um viajante inter-estrelar. Não sei se optaria por siderar-me por mundos que desconheço. Não sei se escolheria embriagar-me pelos sons do espaço. Não sei se escolheria perder-me num qualquer lugar que, hoje, ninguém imagina existir, onde o tempo e o espaço acontecem abandonados um do outro. Talvez não. Como poderia lidar com forças e universos maiores do que tudo se, muitas vezes, nem conseguimos lidar com as forças e lugares que conhecemos no nosso próprio pequeno mundo? Redondo, azul, castanho, redondo, um ponto ainda mais pequeno no universo do que tu e eu neste mundo? É, agora, que vos digo que esta história não é sobre os meus sonhos inter-galácticos. E, não é uma história feliz.

Houve um incêndio. Aqui. Em Doha. Num centro comercial. Dezanove pessoas morreram: treze crianças, quatro educadoras de infância e dois seguranças. Dizia-se que três das crianças eram irmãos, espanhóis. Senti qualquer coisa que não sei descrever. Uma paralisação. Talvez, um momento de sanidade, de consciencialização. Talvez um momento que nos faz lembrar quem somos e o que somos, mais do que todos os outros momentos redundantes e sonambulescos do dia, de todos os dias. E, depois, depois de voltar a ser alguém, invadiu-me um sentimento misto de horror e de cautela. Acreditei, com um grau de cepticismo, na dimensão do acaso. Dos três filhos morreram os três? Não, afinal ainda têm outro filho. Menos mau, ouvi alguém dizer. Menos mal, mas como, pensei eu? Poderá o amor estar compartido no coração dos pais? Talvez seja menos difícil? Que forças restam a este casal? Vivo alheio a esse sentimento distinto e nobre, de ter alguém, alguém mais importante do que nós próprios a roubar-nos a vida. Mas. Mas imagino que será a partir desse sublime momento que, perderemos todo o egoísmo, toda a mesquinhez, toda a frivolidade de uma existência centrada num universo que julgamos estar carimbado com o nosso nome. E passamos a orbitar em torno de uma estrela que nos ilumina, alimentado-nos da energia que nos transmite. Mas as três estrelas que iluminavam o universo de um casal espanhol, explodiram, transformando-se num buraco negro. E desse buraco negro, não escapam os pais, um buraco com uma força maior do que qualquer coisa e alguém. Tal como um buraco negro se forma quando uma estrela fica sem combustível, fazendo o seu núcleo contrair-se até ficar reduzido a uma fracção do seu tamanho, a um pai e uma mãe, que perdem as suas estrelas, o seu âmago contrai-se a um ponto irracional de existência desprovido de sentido e de qualquer luz. E, tal como num buraco negro, a gravidade produzida é de uma força desmesurada, sugando tudo o que encontra. E suga. E subtraí. E tira. E consume. E toda a energia de um pai e de uma mãe, suponho, deve ser alienada. O que resta no centro é um buraco negro.


Os trigémeos neozelandeses

Uns dias depois peguei num jornal. Ao acaso. Por acaso. Pior. Também morreram três filhos, gémeos, de um casal de neozelandeses. Os únicos. Eles tinham recorrido a tratamentos de fertilidade. Tinham lutado para ter um filho. Tiveram três. E agora? Agora........agora foi um momento em que me senti resvalar por um buraco do qual é difícil escapar. Mais uma vez voltei-me a lembrar quem sou e o que somos. E, depois, todos os meus problemas, que não são problemas, nunca foram, desapareceram. Apesar de já terem passado quase dois meses, ainda não esqueci. Não sofri, não perdi, não senti.... mas não esqueci. Não posso, e não quero, ter em mim tamanha indolência. Não deixarei, facilmente, desvanecer-se de mim uma parcela ínfima da infinita dor que a outros dificilmente se dissipará. Dizem que um buraco negro é o resultado de uma deformação do espaço tempo. Sim. Acredito que todo o tempo e todo o espaço daqueles pais seja, agora, imensurável. Que caíram num mundo onde o tempo é um lugar inóspito e os lugares são um tempo perdido. É que um buraco negro é limitado por uma superfície a que chamam de horizonte de eventos. Um horizonte que marca a região a partir da qual não mais, se pode voltar. Passando essa região a força do buraco é tal que mesmo a luz não lhe escapa, tudo é consumido. Sem luz, é um corpo negro. 

Esta é uma história triste. De crianças. De adultos. De todos. Por isso quero cessá-la, rápido. Sem mais me consumir, sem mais te consumir. Para isso pergunto-te: lembras-te de seres criança e imaginar que um dia irias embarcar numa viagem espacial como aquelas que se vêem nos filmes de ficção científica? Talvez não tinhas sido uma dessas crianças. Talvez o teu irmão? Um amigo? Se não, um qualquer rapaz, trolha, lá da escola primária? Eu sonhei. Eu queria ser astronauta. Eu devo ser um desses rapazes trolhas. E tu? O teu irmão? Um dos teus amigos? Não havia nada mais misterioso e audaz do que ir descobrir tudo o que ainda desconhecemos. E depois eu lia os livros de astronomia. E concebia dentro de mim todas as imagens dos planetas, das galáxias, das constelações, dos buracos negros e de todas as outras coisas que ainda hoje os telescópios procuram. Por isso um dia, há muito tempo, comprei um livro sobre buracos negros. Fiquei a saber tudo sobre buracos negros. Bem, pelo menos, fiquei a saber tudo o que se teoriza sobre os buracos negros. Ou melhor, não fiquei a saber nada, porque agora não me lembro de quase nada. Talvez não queira saber mais. Talvez não. Como poderia lidar com forças e universos maiores do que tudo se, muitas vezes, nem conseguimos lidar com as forças e lugares que conhecemos no nosso próprio pequeno mundo? Redondo, azul, castanho, redondo, um ponto ainda mais pequeno no universo do que tu e eu neste mundo?

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