quinta-feira, 22 de dezembro de 2011

Isto não é um Conto de Natal

Às vezes conhecemos pessoas que inesperadamente nos surpreendem. Às vezes conhecemos pessoas que nos obrigam a pensar, a repensar e a questionarmo-nos sobre nós, sobre tudo. E depois de conhece-las damos gratidão por elas terem aparecido na nossa vida. Infelizmente, (ou felizmente?) elas têm de aparecer na nossa vida porque têm muito mais a ensinar-nos do que nós a elas. O Pedro é uma dessas pessoas. Antes de me o apresentarem já me tinham dito que ele era especial, que depois eu ia perceber. Não me contavam o que era, porque era, mas sabiam que eu o ia achar especial. Porquê eu? Ou porquê ele? Seria por eu e por ele? Nunca me contaram nada e eu continuava ansiosa, curiosa, indiscreta. Uma vez vi-o ao longe, quando encontrei a Sara na rua, junto a um parque de diversões para crianças. Ele estava no parque, mas um muro escondia-o e só lhe consegui descortinar um sorriso enorme na boca e nos olhos, parece que apreciava a leveza das crianças. A Sara continuava a debitar conversa e conversa, mas eu não lhe ligava nenhuma, e continuava a tentar perceber quem estava para além daquele muro. Ele não largava as crianças, devia estar sentado num banco qualquer com a filha da Sara a fazer-lhe umas tranças, ao ritmo e bom gosto da miúda.

No dia de anos da Patrícia, ela convidou-nos para lá irmos ter a casa, passar a tarde, passar o serão, vermos uns filmes, jogarmos uns jogos, pormos a conversa em dia. Ofereci-me para ajudá-la, ela aceitou e cheguei mais cedo. O Cláudio, o namorado da Patrícia, também estava lá para ajudar, claro. Colocámos uns aperitivos, uns snacks, umas bebidas, numa mesa junto ao canto da sala, mesmo ao lado da árvore de Natal. O Cláudio arrumou a casa, enquanto eu e a Patrícia ficámos pela cozinha. A campainha tocou, o Cláudio abriu a porta, eram a Joana, o João, a Sandra e a Raquel. Limpei as mãos, espreitei para dentro do forno e verifiquei os biscoitos de amêndoas e os biscoitos de canela, tudo bem. Tive tempo de ir trocar umas palavrinhas com as minhas amigas, antes que todos os outros chegassem e as coisas ficassem mais confusas. Mais uns dez minutinhos e já estava de regresso à cozinha para tirar os biscoitos cá para fora! A Patrícia pediu-me para começar a fazer as panquecas, porque o Chico tinha acabado de lhe mandar uma mensagem a dizer que só demoravam mais dez minutos. E eu sabia que o Pedro vinha com o Chico, finalmente ia conhecer aquele rapaz que todos dizem que é especial, de quem todos gostam e, que só um dia vi ao longe escondido por pequeno muro e com um sorriso enorme na boca e nos olhos, enquanto a filha da Sara fazia-lhe umas tranças, ao seu bom ritmo e ao seu bom gosto. Ora bolas tinha logo de estar sentado, só lhe vi o sorriso, bonito por acaso. Talvez estivesse nervosa, toda a gente dizia que o devia conhecer, que tinha de o conhecer. Não me contavam o que era, porque era, mas sabiam que eu o ia achar especial. Porquê eu? Ou porquê ele? Seria por eu e por ele? Nunca me contaram nada e eu continuava ansiosa, curiosa, indiscreta. Pus-me a fazer as panquecas, quando eles chegaram. Não podia largar a cozinha, ou melhor não podia largar as panquecas, estava toda suja, lambi a massa das panquecas, e não gostava nada do avental que a Patrícia me emprestou, não podia ir à sala cumprimentá-los naquela ridícula figura. Só o Chico passou pela cozinha. O outro João, a Sara e o Pedro deixaram-se ficar pela conversa que reinava na sala. Só me queira livrar das panquecas, só queria ir para a sala e conhecer o Pedro. Com um ouvido na cozinha e outro na sala, lá ia escutando o que se passava na sala, parece que o Pedro é animado, debita piadas e conversa para todos, e parece que todos o gostam de ouvir. “Que histórias terá ele a contar?”; ruminava eu. Despachei-me das panquecas, ou melhor, lá me livrei das panquecas, limpei-me, tirei aquele maldito avental, e finalmente disse à Patrícia que ia para a sala. 
Aprontei a minha blusa, e quando dei por mim a sair da cozinha, eles disseram-me olá, mas as minhas pernas não ligaram e eu disse olá já estava a caminho da casa de banho, nem sei o que me deu, mas lá fui eu dar um retoque na maquilhagem. Respirei fundo, pensei que estava parva de todo, nem sabia porquê. Não podia ser por ele, ainda nem sequer o conhecia. Voltei. E quando voltei reconheci uma cara que não reconhecia, era ele. Ia para dar beijinhos a todos quando desvigorei. Não sei quanto tempo fiquei naquele estado, estúpida, inepta. Será que ele deu por isso? Pois claro que deu. Será que ele já está afeito a isto? Talvez. Será que ainda lhe doí? Não sei. Cumprimentei todos os meus amigos, e depois finalmente apresentaram-nos. Bem que me podiam ter dito que ele era tetraplégico, que estava numa cadeira de rodas, e que era isso a que se referiam. Pois claro que a outra coisa podia ser? Fiquei calada o resto da tarde e da noite, acho que todos perceberam, poucas mais palavras fui capaz de exprimir. Fiquei ali, sentada, primeiro no canto do sofá, depois no canto da mesa, e depois outra vez no canto do sofá, até que por fim, outra vez no canto da mesa. O Pedro é animado, nem parece que está numa cadeira de rodas, nem parece que lhe faltam os braços e as pernas. Foi ele que contou as histórias, e que histórias! Foi ele que contou as piadas, e que piadas! Foi ele, que animou o jantar, a noite, os jogos de mesa, os jogos de vídeo e tudo o que fizemos naquele dia. E eu feita parva, pensava, como é possível, alguém assim numa cadeira de rodas, para sempre, ter mais alegria do que eu, ser mais confiante do que eu, ser mais tudo do que eu? Onde vai ele buscar toda aquela força? Senti-me toda a noite como se fosse eu que que não tivesse pernas nem braços, como se fosse eu que não pudesse sair de uma cadeira de rodas, como se fosse eu que precisa-se dos outros para me irem buscar um copo de água, colocar a refeição na mesa. Senti-me como fosse eu que tivesse as penas e os braços cortados. Porquê? E ele? E ele, parecia que não lhe faltava nada. Parecia que ali tinha tudo o que precisava, tudo o que faria feliz, e que era capaz de tudo. O sorriso sempre bonito, os olhos sempre a brilhar. Parecia que não precisava de ir a lado nenhum, que o resto do mundo não lhe interessava, não existia, ou que todo o mundo estava nele e com ele? Na verdade pensei nisso a noite toda, enquanto tentava adormecer, coisa que não chegou a acontecer. Na verdade ele não podia sair dali, porquê preocupar-se com o que ali não está? Porquê lembrar-se do que não é possível, do que não pode alcançar e, porque não, simplesmente saber-se estar feliz? Na verdade, talvez já esteja habituado e treinado a aproveitar, com quem está, onde está, sem pedir mais, sem esperar mais, porque, saberá ele que não vai ter mais? Não vais ter mais? Parece-me que tem muito mais do que eu! Na verdade aprendeu a estar onde está e a dar-lhe valor. Talvez eu é que não saiba estar onde estou e a dar valor a tudo isso. Talvez seja eu que espere sempre mais, que procure sempre algo que nem sei o quê, quando talvez seja assim tão simples, saber-se usufruir, do que, e de quem, está connosco. Às vezes conhecemos pessoas que inesperadamente nos surpreendem. Às vezes conhecemos pessoas que nos obrigam a pensar, a repensar e a questionarmo-nos sobre nós, sobre tudo. E depois de conhece-las damos gratidão por elas terem aparecido na nossa vida. Infelizmente, (ou felizmente?) elas têm de aparecer na nossa vida porque têm muito mais a ensinar-nos do que nós a elas. O Pedro é uma dessas pessoas.

quinta-feira, 8 de dezembro de 2011

Capitulo I - O tabuleiro de xadrez

Sentou-se. Mais uma vez, como todas as outras vezes, nas noites e noites que por ali desfilaram, fitou o tabuleiro. Os olhos fixaram as pedras brancas. Do outro lado as pedras pretas. Todos os dias, sem excepção, sentava-se num dos lados do tabuleiro conforme a marca apontava. Hoje era dia de jogar as brancas. Observou durante seis minutos a disposição do tabuleiro e decidiu-se, jogou um bispo. Amanhã seria a vez das pretas. Seria. Apenas seria. Porque amanhã, ela, não lá estará. Aprendeu a jogar xadrez com o pai ainda nem frequentava a escola. Quando era pequena jogava todos os dias com o pai, por vezes os jogos estendiam-se por serões. Agora, depois de pousar o bispo, sentiu-se confusa. Pela primeira vez o seu jogo seria interrompido, e não saberia quando o retomaria. Levantou-se e foi fazer um chá. O pequeno nervosismo começou a atacar. Aqueceu a chaleira, ainda gostava de fazer o chá à moda antiga, como a mãe sempre o fez. Optou por um chá branco, colocou a saqueta na chávena e depois da água aquecida, encheu. Pegou na chávena e voltou para a sala, onde deu uma volta de trezentos e sessenta graus perscrutando tudo à sua volta. É este o meu lugar, um dia voltarei, pensou ela. Queria terminar a partida de xadrez que iniciara mês e meio antes, mas sabe que não faria sentido. Lembrar-se-ia sempre da jogada do opositor, ela própria. Quando voltar terminará. A televisão estava desligada, e o silêncio imperava na casa. Vive sozinha desde que se divorciou, não há mais de seis meses. Os pais vivem no lado sul da ilha, ela vive no norte, numa pequena vila de pescadores, como quase todas as vilas daquela ilha. Em Siglufjörður, vila onde ela vive, gere um pequeno negócio de turismo. Herdou dos avós, por consentimento da mãe, uma casa nesta vila para a qual se mudou com o seu ex-marido. Juntos reabilitaram o edifício e decidiram arriscar um negócio próprio, apostando no crescente afluxo de turistas à ilha situada no meio do Atlântico norte.
Estamos em Março e as noites ainda são longas, mas apenas para quem não aqui cresceu e se acostumou. O seu pequeno negócio de Guesthouse dá para sobreviver, mas o que a mais fascina é o fluxo de pessoas a entrar e a sair. Não, não é a entrar e a sair por aquela porta de madeira. É o entrar e o sair das pessoas da sua vida, por vezes só uma manhã, outras vezes só uma tarde, por vezes um dia, vários dias, até vários meses. Acostumou-se às diferenças, às igualdades, ao supérfluo, ao interessante. Habituou-se às histórias, e apesar de nunca se ter ausentado da sua ilha, parecia que já conhecia o mundo. Até que um dia se perguntou: Mas o que é conhecer o Mundo? Sim, o que é? É conhecer as pessoas? É conhecer os lugares? É conhecer as pessoas e os lugares ou os lugares com as suas pessoas, ou será  as pessoas nos seus lugares? Será isto tudo e ainda mais? O que será? E foi assim que um dia terá tomado a decisão de partir e de conhecer.
Deixou-se ficar sentada, fixada no tudo e no nada. Pensa em tudo e não pensa em nada. A mala está pronta já faz dois dias. Não é pessoa de deixar as coisas para a última, não se desleixa, é precavida.
Na verdade, nem sabe bem o que deverá levar consigo. Não sabe que tipo de roupa precisará, nem quanta. Por isso decidiu-se por levar pouca, se precisar comprará onde carece, e mais importante, onde saberá do que lhe é útil. Não sabe por quanto tempo viajará, por onde, e se o fará sempre, ou não, sozinha. Por enquanto só sabe que partirá sozinha com uma mala de porão e uma mala de mão.
Circula pela casa em jeito de despedida, apercebendo-se que brevemente perderá este abrigo, a sua protecção, o seu aconchego. Pega numa maçã para ceia e embalada pelo sentimento nostálgico do futuro que pressente estende-se na sua cama, acariciando-a, e deixando-se transportar pela impressionante viagem do seu passado recente que a deixou agora onde está, e a que a pressionou a estar onde amanhã estará. Será que conseguirá dormir? A noite é passada entre o angustiante rebolar na cama e os pensamentos assombrosos dos próximos dias. Adormece sem por isso se dar. Acorda como sempre acordou sem despertador, mas deixa-se rebolar mais umas quantas vezes, para sentir o poder aconchegador do seu quarto, do seu resguardo. Toma o duche, o pequeno-almoço. Aproxima-se da janela despedindo-se desta imagem matinal. Sem mais demora, quer despachar-se, acabar com esta sensação e partir. Não vale a pena adiar. Não vale a pena .Ainda pouco passava das sete e meia da manhã quando um bom amigo, na sua habitual boa disposição e solidariedade, lhe bateu à porta. Preparava-se para fechar a porta quando inesperadamente pousa a mala e pede um minuto ao amigo. Volta a entrar em casa e sentou-se. Sentou-se? Sim. Durante três minutos deixou-se ficar. Estaria com dúvidas? Não. Depois de observado o tabuleiro de xadrez jogou um cavalo preto, pegou cuidadosamente no tabuleiro transportando-o até ao seu quarto, onde, no roupeiro, o espaço antes ocupado pela roupa que agora enche a mala que deixou pousada junto à porta de entrada, guardou o seu jogo para um dia terminar. Voltou à entrada. Ela e o amigo, juntos, percorreram os cansativos quatrocentos e vinte seis quilómetros de Siglufjörður para Keflavik, onde pernoitou, seguindo no dia seguinte viagem de avião. Destino? Roma.

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