Quase quase quase... Um Conto de Natal - PARTE III
PARTE III – A SORTE
–“A nossa sorte é vivermos
todos os dias.”
Assalta-me uma confusão
de pensamentos. Prendo-me. Olho-me ao espelho. Não me desprendo de mim. E tomo
atenção ao meu rosto. A pele. A pele rugada. As feições. As feições, não me
lembro destas feições. Os espelhos não têm memória. Quantos de vocês se lembram
de uma imagem ao espelho? Quantos de nós? Os espelhos nunca se lembram de nós.
E um dia, mais tarde, olhamos com atenção, e reparamos que o espelho, cada dia,
todos os dias, só mostra aquilo que somos, por fora. E o hoje, não pode ser
igual ao amanhã. Mas, para nós, mas para nós entre o hoje e o amanhã não há
diferença. Precisamos de somar muitos dias, para um dia. Para um dia, sim, nos
assustarmos. Como se não nos tivéssemos olhado ao espelho todos os dias que
ficaram para trás. Como se, o que somos hoje, fosse uma mutação de um dia
longínquo, um dia de que não nos lembramos. A nossa sorte é que vivemos todos
os dias, e, em cada dia não sentimos que envelhecemos. Assim, assim é mais
fácil. Não sofremos todos os dias por sabemos que amanhã perderemos uma ínfima
parte da nossa jovialidade. Os espelhos não têm memória, nem se lembram de nós.
A nossa sorte é vivermos todos os dias.
Continuo a olhar-me ao
espelho. Pelo espelho passo os meus dedos, como se pudesse tocar na minha pele.
Como se fosse o espelho que tivesse o tacto da minha pele. Não tem, não tem
nada. Apenas tem uma fugacidade que nada é de mim. Que não me conhece. Solto-me
do espelho, e vou ter com Ingrid à cozinha. Encontro Ingrid a olhar pela
janela.
–“Então, de que ajudas é
que precisas?”, perguntei eu.
–“Nada…. Já não é nada.
Já fiz”.
Ingrid olha pela janela.
Diz-me para ir brincar com os netos. Hoje está esquisita. Parece que lhe noto
uma lágrima desbotada no rosto. Deve ser ilusão minha. Devo estar um pouco
desconcentrado, com toda esta história do espelho. Volto para a sala, mas não
vejo os miúdos. Nem as noras.
–“Sabes onde estão eles,
Ingrid?”
–“Desculpa, estão lá
fora”.
E é para eles que Ingrid
olha. Pela janela, pelo mundo da nossa janela. Visto o blusão e calço as luvas.
Lá fora, continua frio. Temos um pátio coberto de neve. Em alguns espaços já
limpámos a neve. Noutros não. Duas árvores ladeiam o passeio até à estada que
fica a cerca de seis metros da casa. São árvores altas, e também estão cobertas
de neve. Hans brinca com a moto telecomandada, de lagartas de neve, que eu lhe
ofereci este Natal. Ainda é um brinquedo grande. Os outros, com as minhas
noras, deslizam por um escorrega que comprei hás uns dois ou três anos, para
eles brincarem no pátio. O dia continua de um azul bonito. Mas está muito frio.
Derek pede a Hans para brincar um pouco com a sua moto telecomandada, mas Hans
não deixa. Elisa, a mãe de ambos, ralha com Hans, e ele, um pouco contrariado,
passa o comando ao irmão. As meninas continuam no escorrega e riem-se muito
quando caem na neve! Tento-me lembrar da minha primeira recordação ao espelho,
mas nada. E olho para o céu. Olho para o céu. Como se no céu fosse encontrar a
projecção desse dia, do dia em que me conheci a um espelho. Claro que, nada. Hans,
vem ter comigo e pergunta-me para onde estou a olhar. Digo que, para nada, para
lado algum. Depois pergunta-me em que estou a pensar. Hesitei. Hesitei……..
–“A nossa sorte é vivermos
todos os dias.”
–“Qual sorte?”, ouço de
uma voz inocente.
–“A nossa sorte é vivermos
todos os dias. Não te esqueças, Hans.” – mas que maluquices estou eu a dizer ao
miúdo? – “Nada, Hans. Não me ligues. O teu avô está a perder o tino!”
Por momentos Hans, não
disse mais nada e eu também não.
–“Olha!” – e Hans aponta
para o céu, onde quatro riscas brancas, sem ordem aparente, rasgam o azul
esperança – “O que são avô?”
Quatro aviões cruzam o
céu, cada um para seu lado, como que formando um quadrado, uma tela de pintura
no céu. Quatro rastos, de fumo branco, bem alto, lá no alto, como pincéis de
mãos invisíveis.
–“São apenas aviões.”
–“Mas porque deixem
aquele raso branco avô? Já vi muitos aviões no céu e nunca tinha visto uma
rasto branco.”
–“É apenas um efeito de
criação, digamos que, de nuvens artificiais.”
–“Nuvens artificiais?
Mas os aviões sobem para criar nuvens? Porque não há nuvens? É preciso
nuvens?”, a sua voz era…….. inocente.
–“Não! Não é preciso
criar nuvens. Podem ser aviões normais de passageiros ou outros aviões, não
sabemos. É muito simples. Ninguém quer criar nuvens, mas, o funcionamento do avião liberta vapor de água para a atmosfera a temperaturas muito
muito quentes, como quando vez as panelas no fogão a deitar vapor. Depois, como
está muito muito frio na atmosfera, o vapor de água libertado pelo avião
condensa formando aquelas trilhas de nuvens artificiais, como, quando por
exemplo, o vapor das panelas encontra um vidro frio fazendo o vidro embaciar. Percebeste?”
–“Simmmm!”
E limitei-me a apreciar
a beleza de um céu azul esperança rasgado por trilhas de um branco pueril.
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