Quase quase quase... Um Conto de Natal - PARTE II
PARTE II –O ROSTO
É sempre assim quando
chega o Natal. Os filhos, as noras, os netos, e eu e Franz. O Natal já passou e
falta menos de uma semana até ao ano novo. Lá em cima, nos quatros, ainda estão
todos a dormir, mesmo Franz. A cada ano que passa os netos estão maiores. Claro
que estão. Que outra coisa haveriam de estar? O Hans é muito parecido com o pai
dele, o meu filho. Lembro-me bem de, quando éramos eu, Franz, os dois miúdos, e
os meus pais ou os pais de Franz. Hans é tal e qual o seu pai. Em tudo. Este
Natal senti uma dor lancinante ao ver os meus netos. Dos meus olhos, parecia
que, em vez dos meus netos, via os meus filhos. E vinham-me recordações.
Memórias. Recordações. E assustei-me. Em mim, pouco ou nada sinto de diferente,
desde o tempo dos meus filhos para o tempo de agora, dos meus netos. Será assim
mesmo? Como não me posso sentir diferente? Sinto-me mais cansada, sim. Sinto
uma lassidão que antes desconhecia, sim. Mas curioso é, que sinto, também, que
nunca perdi qualquer coisa dentro de mim, qualquer coisa que nunca mudou, não
sei se, a minha voz (interior?), se, a minha forma, se, o meu eu? Há qualquer
coisa em nós que parece imutável. Eu sei que Franz guardou quase todas as
nossas fotografias. Acho que estão numa gaveta do móvel da sala. Vou ver. Cá
estão. Eu aos dez, eu aos vinte, eu aos trinta, quarenta, cinquenta. Franz aos
dez, vinte, trinta, quarenta, cinquenta. Nós. Não me recordo da maioria das
fotografias. Olho para as fotografias como que espantada por aquilo que éramos.
Uma fotografia, um momento infinitesimal da nossa vida, um sopro de tempo, que
um dia, mais tarde, nos assombra na mesma proporção para a distância a que foi
tirada, como se todo o tempo entre a fotografia e o agora pesasse. Há uma
fotografia de Franz que me capta a atenção. Talvez seja por me fazer recordar
os dias em que o conheci. Deve ter sido tirada mais ou menos nessa altura. Tem
o corte de cabelo de então, e acho que reconheço o blusão. Andávamos os dois na
Universidade. Ele era estudante do segundo ano e eu do terceiro. Sim, eu sou
mais velha do que ele. Ele era um homem alto e esguio, magro. Bonito. Gostava
muito do cabelo dele, macio, e louro como o ouro. Nesse tempo era fácil apaixonarmos,
porque nada sabíamos. Assim, era fácil iludirmo-nos. Confundir paixão com amor
e beleza com belo. Talvez me esteja a cair uma lágrima. Acho que estou a ouvir
barulhos lá de cima. Alguém deve estar a acordar. Deve ser Franz. Não quero que
ele me veja assim, vulnerável, nervosa. Com alguma pressa, volto a colocar as
fotografias dentro da gaveta.
–“Bom dia!”, diz Franz.
–“Bom dia! Precisamos de
ir ao centro.”
–“Está bem. Agora de
manhã?”
–“Sim, se puderes.”
–“Pode ser.”
Tomamos e pequeno-almoço
e saímos. Lá em cima, mais ninguém acordou.
Desde que vi as fotografias
que estou nervosa. Não sei porquê. Parece que tenho medo de mim própria. Não
sei o que se passa. Fizemos algumas compras de supermercado, poucas, tomámos um
café numa pastelaria e agora voltamos para casa. Subimos por uma rua e sigo um
pouco atrás de Franz. De vez em quando ele pára, olha para trás, para mim, e eu
sorrio. Ele sorri de volta, mas ainda não sei ele percebeu que não estou muito
bem. Por isso é que me deixei ficar um pouco para trás. Talvez, até, nem tenha
feito de propósito, mas este estado absorto, distrai-me da banalidade. Agora
ele parou mas espera por mim. Baixo um pouco a cabeça e dou-lhe um toque com o
cotovelo para seguirmos. Mas espera, digo eu. Peço a ele para levar os sacos.
Ele leva. Chegamos a casa. Hans, vem lançado, e abraça-me. Quase que caio
porque tenho os sacos na mão e não me consigo equilibrar.
–“Tonto!”
Não estou bem e é melhor
fugir por um bocado. Vou-me distrair para a cozinha, sozinha. O Franz parece
que vai para a sala com os netos. Primeiro fui vestir qualquer coisa mais
confortável. Quando subia as escadas parece que ouvi falar em fotografias? Não
pode ser. Devo estar mesmo nervosa. Não sei porquê este estado. Como se eu
nunca tivesse olhado para aquelas fotografias antes. É melhor concentrar-me nas
coisas da cozinha. Vou para a cozinha arrumar as compras, poucas, não há muito
para arrumar. Da sala chegam-me alguns risos. Devem estar a brincar. Mas não,
não. E ouço Maike a perguntar:
–“Achavas a avó bonita
avô?”
–“Sim, a tua avó era
muito bonita!”
–“E ainda achas a avó
bonita?”
E deu-me um
baque……….fiquei tão atemorizada que não ouvi a resposta. Provavelmente, é
melhor não ter ouvido. Respiro fundo e penso que é melhor ir até à
casa-de-banho. Entro na casa-de-banho e não evito, não evito. Olho-me ao
espelho. Entre mim e o espelho o tempo pára. A vida pára. Porque de um lado e
do outro somos iguais, somos o mesmo, somos o mesmo rosto. E. E é então que me
vem à cabeça, a ideia do azar, do nosso azar:
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