Quase quase quase... Um Conto de Natal - PARTE IV
PARTE IV – O AZAR
–“O nosso azar é vivermos
todos os dias”.
Assalta-me uma confusão
de pensamentos. Prendo-me. Olho-me ao espelho. Não me desprendo de mim. E tomo
atenção ao meu rosto. Procuro as rugas que não tinha ontem, mas que tenho hoje.
Procuro o cabelo que ontem, ainda brilhava, mas que hoje é baço. Procuro no
espelho os sinais diferentes de ontem e encontro-me nos meus olhos. Parecem-me
a única parte do rosto que não envelheceu. Viro os olhos e percorro-me no
reflexo do espelho. Levanto as mãos ao nível do rosto e acaricio a minha pele.
Não sinto a lisura, a suavidade de ontem. De ontem não. De um dia, atrás, muito
atrás que eu não me lembro. Toco no cabelo e não sinto, já não sinto a sua
vitalidade. Apanho o cabelo. Viro-me de perfil, para um lado, depois para o
outro. O que terá Franz respondido a Maike quando ela lhe perguntou se me ainda
achava bonita? Já não sou bonita, eu sei. Como posso ser? Sou velha, sim já sou
velha. Não é isso que me abala. Agora, sei que, olhar-me ao espelho é uma atitude defectível.
O espelho é como alguém insidioso, traiçoeiro, que todos os dias nos engana.
Vemo-nos todos os dias ao espelho, e, assim, todos os dias, não notamos as
diferenças para com o dia de ontem. Iludimo-nos, porque não constatamos que mudamos.
Quem se vê todos os dias não pode ver as diferenças. É o nosso azar, porque um
dia, um dia quando olharmos bem, já não somos jovens e bonitos e, e depois atemorizamo-nos,
mas já perdemos tudo. O corpo está sempre à frente da mente. Em todo o tempo
para trás, vivemos enganados, diferentes da nossa condição. Se, todos os dias,
o espelho não me ludibriasse, talvez, talvez eu olhasse mais para dentro de mim
em vez de para fora. E, assim, talvez, vivesse mais perto da minha condição. Vivemos
iludidos de um envelhecimento que não nos escapa, feroz, inexorável. O azar da
nossa vida é vivermos todos os dias.
Desprendo-me do espelho.
Tenho lágrimas a escorrer-me pelo rosto. Limpo-as. Não me podem ver assim.
Volto para a cozinha, mas ainda os ouço a falar na sala. Não posso ouvi-los.
Estou sensível. Vou chamar o Franz para me ajudar na cozinha, talvez assim
parem.
–“Franz?”, e chamo-o
escondendo-me na esquina do corredor.
Peço ajuda na cozinha.
Recusamos a ajuda das noras. Ele vem, eu fujo para a cozinha, já me arrependi,
ainda devo ter estas lágrimas no rosto.
–“Vou só passar,
primeiro, pela casa-de-banho. Já te ajudo.”
–“Está bem”, ainda bem, ainda
bem, ainda bem, que alívio, que sorte.
Posso recompor-me. Franz
demora algum tempo a voltar. Elisa e Eva gritam-me da sala que vão lá para fora
brincar com os miúdos. Perguntam se preciso de ajuda. Não, digo que não, claro.
Ouço os sons que vem junto à porta, são sons de quem veste casacos, blusões, e
ouço Hans:
–“Vou buscar a moto que
o avô me deu!”
–“Depois não te esqueças
das luvas”, diz Elisa.
E ouço a porta a bater. Há
uns dois ou três anos, Franz, comprou um escorrega para os cachopos, que, eles,
gostam muito. Nós também. Ainda não limpámos a neve de todo o pátio mas não faz
mal, com a neve os miúdos e os meus filhos construíram um boneco de neve. Já
perdeu um braço. Maike, tenta consertá-lo, mas não consegue. E foi para o
escorrega. Ao olhar para os cachopos penso alto, “O azar da vida é vivermos
todos os dias”, e uma sombra inócua debaixo do umbral da cozinha…
–“O que disseste avó?”,
é Hans.
Traz ao colo um comando
e a prenda do avô. A minha voz treme:
–“Nada, filho, nada, a
avó não disse nada. Está a pensar sozinha”
Hans desaparece e
volto-o a encontrar pela janela, lá fora. E:
–“Então, de que ajudas é
que precisas?”.
Atrapalho-me……nem me
lembrei de fingir que estou a fazer qualquer coisa. Será que ele notou?
–“Nada…. Já não é nada.
Já fiz”.
Continuo a olhar pela
janela e digo:
–“Vai brincar com os
netos.”
Tento esconder o perfil
onde sinto uma lágrima a escorrer-me. Espero que ele não tenha visto. Foi para
a sala. Ai, esqueci-me de lhe dizer que foram lá para fora.
–“Sabes onde estão eles,
Ingrid?”
–“Desculpa, estão lá
fora”.
E continuei a olhar pela janela. Gosto de ver os meus netos a brincar.
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